"Dizem
Que apesar de todas as barbaridades
E de todas as nossas desavenças
Ser feliz nos custou a verdade
E a verdade apagou nossas crenças"
(Rafael Zarpellon)
Enquanto ela voltava para Paris, o meu café esfriava na caneca que estava sobre a mesa. Estava frio naquele dia. Era Julho, inverno de 83. A minha mão pousou sobre a máquina de escrever, o pensamento vagava no silêncio inerte do meu escritório. Não conseguia deixar de pensar no quanto ela me fez feliz naqueles longos anos em que estivemos juntos.
A estante a minha frente me remetia a lembranças boas, mas que eu não queria lembrar. Ela era de madeira grossa e escura, talhada pelo tempo. Ganhei da minha avó quando eu entrei na faculdade. Meu avô era marceneiro e fazia peças de madeira que duravam uma vida inteira. Os livros que ali estavam ainda eram da época em que eu a conheci.
Era uma manhã clara, com céu azul e clima ameno. Era o primeiro dia de aula depois das férias do verão de 61. Eu caminhava pelo pátio da faculdade indo em direção a sala de aula, era meu segundo ano, e eu estava decidido a me empenhar mais, já que as minhas notas no ano anterior não foram tão agradáveis. Como era o primeiro dia, os calouros estavam agitados e empolgados por entrarem na faculdade. Eles formavam uma grande aglomeração na porta de entrada, conversando alto e rindo, meio nervosos pela angústia de não saber o que viria pela frente. Normal, eu tinha passado por isso, pensei comigo mesmo.
Não fosse por ela, esse dia seria contabilizado como mais um dia normal na minha vida.
Eu não era um rapaz que se podia dizer que tivesse muito sucesso com as mulheres. Talvez não pela aparência física, mas pela timidez que sempre fez parte da minha personalidade. O máximo que eu fazia quando via uma mulher bonita era abrir a boca, era o começo do esboço de uma admiração. Mas dessa vez foi diferente. Quando eu a vi passando por mim com aqueles cabelos negros, pele alva e de aparência macia, meu mundo parou. Naquele instante eu tive a certeza de que teria de tomar alguma atitude. O seu perfume entrou pelas minhas narinas assim como uma música clássica entraria nos ouvidos do meu pai - ele adora músicas clássicas, e eu herdei o seu bom gosto -, meus ouvidos filtraram o barulho da multidão, fazendo-me ouvir somente o vento.
Nunca vou esquecer daquele cheiro, e muito menos daquele dezenove de março de mil novecentos e sessenta e dois...
-Continua-
(Escrito por Rafael Zarpellon)
Nenhum comentário:
Postar um comentário